O observador mais atento e com algum senso crítico certamente terá notado que, nos últimos anos, nosso sistema punitivo tem passado por um processo contínuo de desmonte. Componentes essenciais de sua estrutura vão sendo, aos poucos, retirados do ordenamento jurídico, seja por decisões judiciais, seja por alterações legislativas.
O pano de fundo dessa situação é qualificado como um processo de evolução legislativa e jurisprudencial, de adequação de arcabouços anteriores ao regime constitucional aà nova ordem inaugurada em 1988. Também se destaca uma “avanço” doutrinário, com a introdução, nos meios de pensamento jurídico, de teorias que cultuam o direito penal em sua expressão minimalista.
Esse processo se fez sentir com maior expressão a partir de 1997, com a edição da Lei nº 9.514, que na prática acabou com a pena de prisão para crimes com pena até quatro anos sem violência ou grave ameaça. Tudo bem, os tipos penais ainda citam lá “reclusão de 1 a 4 anos”, mas o fazem apenas por costume: aquele crime não gera prisão. No máximo, trará um incomodozinho de prestar serviços ou doar cestas básicas. Se, e somente se, o apenado não quiser, é que poderá eventualmente ser preso caso descumpra as condições (aliás, passará pelo périplo regime aberto – descumprimento – regressão).
Outros institutos fundamentais foram sendo solapados. A prisão preventiva passou por um funil. Atualmente, quase nenhuma situação é capaz de ensejá-la. O crime é grave? Isso é mera opinião do julgador de primeiro grau, fundamento inidôneo para a custódia cautelar (aliás, a opinião do julgador de primeiro grau serve pra quê?). O réu fugiu? É direito dele insurgir-se contra uma ordem de prisão ilegal (aliás, esse entendimento, que é dominanmte no STF, praticamente esvaziou o conteúdo da prisão para garantia de aplicação da lei penal). O réu está ameaçando testemunhas ou vítimas? Tudo bem, deixe ele preso uns dias, mas depois que ouvir as testemunhas, solte-o no mesmo ato (imagine a coragem da testemunha de manter seu depoimento).
Nos últimos anos o desmonte do sistema punitivo foi mais intenso. Crimes hediondos não sujeitam ninguém a regime penal mais gravoso, isso é inconstitucional porque é desumano (posteriormente surgiu nova lei, muito mais branda, alterando o cenário).
Também não se pode manter ninguém preso, mesmo que condenado em primeira e segunda instâncias. Há que se esperar o esgotamento total da via recursal para, talvez, admitir-se a ordem de prisão.
Algemas? Coisa da inquisição, modernamente não se usa mais (no Brasil).
Um a um, elementos preciosos de um sistema punitivo foram caindo. E o que mais falta para ser retirado? A bola da vez é a reincidência.
Recentemente, o STF se pôs a julgar os HCs 94620 e 94680. Discutia-se, na ocasião, se o juiz pode levar em conta inquéritos e ações penais em andamento contra o réu a título de maus antecedentes. Apenas para registro, entendo que não, sou conservador quanto a temas penais mas não a ponto de admitir que alguém seja mais severamente punido por algo que nem está resolvido.
Iniciado o julgamento, o relator votou pela denegação da ordem, entendendo cabível a consideração dos antecedentes. Pediu vista o Min. Cézar Peluso e ao fazê-lo fez firme e muito bem fundamentada defesa da inconstitucionalidade da reincidência. Noticiou o STF:
O ministro Cezar Peluso questionou se o fato de existirem inquéritos ou ações penais, ainda sem decisão, pode justificar a exacerbação da pena. De acordo com o ministro, com relação a outros processos, apenas a reincidência é motivo para aumento de pena, conforme disposto no artigo 61 do mesmo Código.
Para Peluso, inclusive, esse dispositivo também deveria ser discutido, uma vez que o infrator já pagou pelo crime que cometeu. O ministro disse entender que, mesmo definitiva, uma condenação não deve servir de agravação para a pena em outra sentença. “A cada crime, sua pena”, disse Peluso, lembrando que existe um processo, em tramitação na Corte, discutindo a constitucionalidade do uso da reincidência como agravante.