Artigo do Juiz Marcelo Bertasso - de Umuarama (PR) - fala sobre a frouxidão do sistema penal brasileiro

07/04/2012 12:53

Desmontando o sistema punitivo. Peça da vez: reincidência

20 Mar

O observador mais atento e com algum senso crítico certamente terá notado que, nos últimos anos, nosso sistema punitivo tem passado por um processo contínuo de desmonte. Componentes essenciais de sua estrutura vão sendo, aos poucos, retirados do ordenamento jurídico, seja por decisões judiciais, seja por alterações legislativas.

O pano de fundo dessa situação é qualificado como um processo de evolução legislativa e jurisprudencial, de adequação de arcabouços anteriores ao regime constitucional aà nova ordem inaugurada em 1988. Também se destaca uma “avanço” doutrinário, com a introdução, nos meios de pensamento jurídico, de teorias que cultuam o direito penal em sua expressão minimalista.

Esse processo se fez sentir com maior expressão a partir de 1997, com a edição da Lei nº 9.514, que na prática acabou com a pena de prisão para crimes com pena até quatro anos sem violência ou grave ameaça. Tudo bem, os tipos penais ainda citam lá “reclusão de 1 a 4 anos”, mas o fazem apenas por costume: aquele crime não gera prisão. No máximo, trará um incomodozinho de prestar serviços ou doar cestas básicas. Se, e somente se, o apenado não quiser, é que poderá eventualmente ser preso caso descumpra as condições (aliás, passará pelo périplo regime aberto – descumprimento – regressão).

Outros institutos fundamentais foram sendo solapados. A prisão preventiva passou por um funil. Atualmente, quase nenhuma situação é capaz de ensejá-la. O crime é grave? Isso é mera opinião do julgador de primeiro grau, fundamento inidôneo para a custódia cautelar (aliás, a opinião do julgador de primeiro grau serve pra quê?). O réu fugiu? É direito dele insurgir-se contra uma ordem de prisão ilegal (aliás, esse entendimento, que é dominanmte no STF, praticamente esvaziou o conteúdo da prisão para garantia de aplicação da lei penal). O réu está ameaçando testemunhas ou vítimas? Tudo bem, deixe ele preso uns dias, mas depois que ouvir as testemunhas, solte-o no mesmo ato (imagine a coragem da testemunha de manter seu depoimento).

Nos últimos anos o desmonte do sistema punitivo foi mais intenso. Crimes hediondos não sujeitam ninguém a regime penal mais gravoso, isso é inconstitucional porque é desumano (posteriormente surgiu nova lei, muito mais branda, alterando o cenário).

Também não se pode manter ninguém preso, mesmo que condenado em primeira e segunda instâncias. Há que se esperar o esgotamento total da via recursal para, talvez, admitir-se a ordem de prisão.

Algemas? Coisa da inquisição, modernamente não se usa mais (no Brasil).

Um a um, elementos preciosos de um sistema punitivo foram caindo. E o que mais falta para ser retirado? A bola da vez é a reincidência.

Recentemente, o STF se pôs a julgar os HCs 94620 e 94680. Discutia-se, na ocasião, se o juiz pode levar em conta inquéritos e ações penais em andamento contra o réu a título de maus antecedentes. Apenas para registro, entendo que não, sou conservador quanto a temas penais mas não a ponto de admitir que alguém seja mais severamente punido por algo que nem está resolvido.

Iniciado o julgamento, o relator votou pela denegação da ordem, entendendo cabível a consideração dos antecedentes. Pediu vista o Min. Cézar Peluso e ao fazê-lo fez firme e muito bem fundamentada defesa da inconstitucionalidade da reincidência. Noticiou o STF:

O ministro Cezar Peluso questionou se o fato de existirem inquéritos ou ações penais, ainda sem decisão, pode justificar a exacerbação da pena. De acordo com o ministro, com relação a outros processos, apenas a reincidência é motivo para aumento de pena, conforme disposto no artigo 61 do mesmo Código.

Para Peluso, inclusive, esse dispositivo também deveria ser discutido, uma vez que o infrator já pagou pelo crime que cometeu. O ministro disse entender que, mesmo definitiva, uma condenação não deve servir de agravação para a pena em outra sentença. “A cada crime, sua pena”, disse Peluso, lembrando que existe um processo, em tramitação na Corte, discutindo a constitucionalidade do uso da reincidência como agravante.

De fato, há processo no STF cuja repercussão geral foi admitida a fim de se discutir a constitucionalidade da reincidência. Não obstante, em diversos precedentes aquela corte considerou que a regra do art. 61, inciso I, do CP foi recepcionada pela Constituição vigente. Nesse sentido: HC 73394/SP (DJU de 21.3.97); HC 74746/SP (DJU de 11.4.97). HC 91688/RS, j. 14.8.2007.

Em meu entender, a reincidência não conflita com qualquer dispositivo constitucional, não contraria preceito fundamental ou princípio. Sinceramente, por mais que olhe, não consigo ver nenhuma regra constitucional violada pelo fato de se agravar a pena de alguém que, já condenado, volta a delinquir.

No entanto, é forçoso reconhecer que, no constitucionalismo moderno, com o apogeu da interpretação pós-positivista (que, em breve resumo, leva em conta os princípios como mandamentos nucleares, que gozam de força normativa superior às regras expressas e assumem um conteúdo semântico bastante plástico), é possível desenvolver qualquer interpretação sobre inconstitucionalidade de norma. Basta dizer que a reincidência fere o princípio da dignidade da pessoa humana e pronto, está feita uma interpretação pós-positivista de conformação vertical negativa de norma infraconstitucional, ou seja, foi-se a reincidência por água abaixo.

Recordo-me quando, ainda acadêmico, assisti a uma palestra (excelente, por sinal) de um famoso desembargador gaúcho, um dos maiores nomes do direito alternativo, em que se defendeu não só a inconstitucionalidade da reincidência, mas sua utilização como atenuante (art. 66 do CP). Considerava o palestrante que é dever do Estado reeducar o preso. Se, a despeito de condenado, o preso não é reeducado, sua nova infração decorreu de uma falha estatal e, portanto, deve a pena ser minorada, afinal, a reincidência ocorreu por culpa do Estado.

Data venia, vejo esse raciocínio como uma interpretação paternalista. É muito fácil jogar tudo sobre as costas do Estado, como se se tratasse de um ente distante e como se não fizéssemos parte dele (para o bem e para o mal). No entanto, não se pode esquecer que, antes de se falar em responsabilidade reeducativa do Estado, existe algo chamado livre-arbítrio. Todos os integrantes do Estado contam com essa faculdade (exceto inimputáveis que, exatamente por essa razão, escapam da responsabilização penal) e é ela o pêndulo que fará com que sejam ou não punidos aqueles que transgridem as leis.

Se alguém, preso e condenado, resolve delinquir novamente, não o faz porque o Estado não o reeducou, o faz, antes de tudo, sabendo das consequências de seu novo crime, mas escolhendo assim agir. É evidente, portanto, que merece castigo maior, porque o primeiro foi insuficiente para convencê-lo a seguir as leis.

O entendimento do Min. Peluso, por outro lado, é mais coerente, mas igualmente não me convence. O julgador, ao dosar a pena, leva em conta não apenas aspectos objetivos do crime, mas dados antecedentes. Analisa conduta social e personalidade do réu, fatores que não compõem o delito nem o circundam, mas são fundamentais para se dosar a pena.

Sendo assim, embora seja correto afirmar que a cada delito deve ser imposta sua pena, é igualmente certo dizer que, considerando a vida pretérita do acusado como elemento definidor da individualização da sanção, nada impede, ao contrário, tudo recomenda, que se leve em conta seu histórico de infrações penais para puni-lo mais severamente, porque, como dito, escolheu ele, mesmo sabedor das consequências de seu crime, tornar a delinquir, mantendo, assim, uma relação de conflito com a lei.

No entanto, acredito que o STF derrubará a reincidência, dando curso ao processo de desmonte do sistema punitivo. E, com isso, solapará de vez seus fundamentos.

Sem reincidência, a progressão de regime mais gravosa em crimes hediondos (3/5) cai por terra. Também cairá por terra mais um dos fundamentos da prisão preventiva, a garantia da ordem pública para evitar novos delitos. Ora, se o acusado não pode ser punido porque delinquiu anteriormente, tal fator também não pode servir de fundamento para sua prisão cautelar.

Também a fixação de regime (que é mais gravosa quanto a reincidentes) obedecerá fundamentalmente ao critério quantitativo (em palavras simples, se a pena for inferior a oito anos, esqueça a cadeia).

Por fim, cairá por terra uma das (poucas) consequências da condenação: o fim da primariedade. Atualmente, com a frouxidão penal, o único efeito prático de condenações quanto a crimes menos graves é afastar a primariedade do réu. Assim, se ele continuar a delinquir, nos próximos delitos seu tratamento será mais rigoroso. Caindo a reincidência, continuará tudo na mesma, o réu poderá delinquir tranquilamente porque tal fato não será interpretado contra ele.

O dificil será explicar para os condenados primários por qual motivo o apenamento deles é igual ao dos reincidentes. Afinal, a pena não deveria ser individualizada?

E pensar que os mais conservadores criticavam o direito penal mínimo. Hoje, se nosso direito penal fosse mínimo, pelo menos surtiria algum efeito…na verdade, nosso direito penal é de fantasia.

PS: Tenho plena consciência de que a opinião que expus aqui é minoritária; meu conservadorismo em matéria penal parece empoeirado, mas se baseia numa visão de cidadão, e não apenas de profissional do direito. Não quero, obviamente, criticar ou desprezar os argumentos dos penalistas liberais, dos que concordam com o “desmonte” que mencionei acima. Muito menos pretendo dar opinião sobre decisões do STF ou de outro tribunal, apenas cito-as como exemplos pontuais do que quero dizer. Com o post pretendo, apenas, oferecer um contraponto ao discurso dominante. Afinal, a divergência é a essência da democracia e exatamente por isso as críticas são bem vindas.

 

Fonte: Blog do Marcelo Bertasso - https://mpbertasso.wordpress.com