A Defesa da Sociedade Está Fora de Moda? - por Alessandro Garcia Silva

13/04/2012 10:11

 

A DEFESA DA SOCIEDADE ESTÁ FORA DE MODA?

 

Alessandro Garcia Silva, Promotor de Justiça de Divinópolis (MG)

 

Hodiernamente, o direito constitucional à segurança pública, consagrado nos art. 5o, caput e art. 144 da Lex Legum, encontra-se, praticamente, adormecido no texto constitucional, olvidado por badalados juristas e de um modo geral ignorado pelos operadores do Direito.

 

O atual abismo existente entre o sistema jurídico penal e a segurança pública na verdade é um mantra idealizado e propalado, diuturnamente, pelos doutrinadores da moda, que verberam, fervorosamente, que ao direito penal não cabe resolver o problema da segurança pública, nem mesmo contribuir para tanto, sendo essa uma tarefa exclusiva do poder executivo através da implementação de políticas públicas.

 

Na verdade, as políticas públicas na área de segurança pública e um direito penal efetivo e realmente intimidativo não se repelem, mas ao contrário, coexistem e se complementam indissociavelmente na tarefa de prevenir e reprimir a prática de infrações penais.

 

Nessa direção perfila-se a doutrina autorizada:

 

“A segurança pública consiste numa situação de preservação ou restabelecimento dessa convivência social que permite que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbação de outrem, salvo nos limites de gozo e reivindicação de seus próprios direitos e defesa de seus legítimos interesses. Na sua dinâmica, é uma atividade de vigilância, prevenção e repressão de condutas delituosas”.[1] – (original sem grifos)

 

Convém alinhavar que a ineficácia social e jurídica deste postulado constitucional tem origem na demasiada maximização dos direitos e garantias individuais penais levada a cabo por uma interpretação jurídica-laxista de grande parte dos operadores do Direito.

 

A priori, como pedra de toque do raciocínio a ser desenvolvido impõe-se a definição do laxismo penal que infelizmente vem encontrando terreno fértil na praxis judiciária. In verbis:

 

1. Laxismo penal: tendência a propor a) solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção oposta, ou b) punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do condenado, tudo sob o pretexto de que, vítima do fatalismo socioeconômico, o delinqüente sujeita-se, quando muito a reprimenda simbólica”.[2]

 

Ressalte-se, por fundamental que o discurso entoado em favor da sociedade, não vem encontrando eco no meio jurídico e ao contrário, sempre que algum aplicador do Direito se insurge contra a benevolência para com a criminalidade, é automaticamente rotulado pelos penalistas fashion de verdugo e reacionário.

 

As arbitrariedades e violências cometidas no período de exceção inspiraram o legislador constituinte na formação da Carta Magna de 1988 erigindo uma série de direitos e garantias individuais justamente para aplacar as indevidas injunções estatais na esfera de liberdade do cidadão.

 

No entanto, numa linguagem coloquial como diriam os nossos avós, no alto da sabedoria amealhada com anos de vida, “nem oito, nem oitenta”. Assim, sob a égide de defender o status libertatis não podemos inviabilizar o poder estatal de punir ou torná-lo uma capitis diminutio, “demonizando” o processo penal transformando-o, sob a ótica de muitos penalistas “modernos”, em um instrumento do furor persecutório do Estado-Leviatã.

 

Dessa forma, ultimamente, venia permissa, nos deparamos com interpretações doutrinárias e jurisprudenciais que causam espanto não só pela criatividade e conteúdo laxista, mas acima de tudo pelo descompromisso total com a vítima do crime e com a sociedade em geral.

 

Nesse sentido, à guisa de ilustração seguem alguns exemplos:

 

 1. O STF já decidiu que não é crime o cidadão portar arma de fogo desmuniciada por entender que a arma de fogo descarregada não representa perigo concreto à incolumidade pública, sendo, pois, atípica a conduta.

 

2. Em respeitável doutrina sustenta-se que a reincidência real não deve ser considerada agravante na exasperação da pena, mas sim atenuante, uma vez que a sociedade falhou no seu dever de ressocializar o criminoso. [3]

 

3. Os Tribunais pátrios vêm entendendo que a Lei n. 11.464/2007 que instituiu a progressão de regime penitenciário nos crimes hediondos somente tem eficácia prospectiva não atingindo situações pretéritas por ser considerada novatio legis in pejus, não obstante, a vedação legal até então vigente (art. 2o, § 1o, da Lei n. 8072/90), que diga-se de passagem não fora ab-rogada e nem mesmo declarada inconstitucional por controle concentrado, mas tão somente incidenter tantum pela via difusa.

 

4. Outro festejado jurista repele a eficácia objetiva da representação nos crimes de ação penal pública condicionada exigindo a individualização de todos os co-autores[4] e bem como sustenta uma posição inusitada na interpretação do art. 217 do CPP, quando, preleciona: “Retirada do réu da sala (art. 217 do CPP): se dá quando o réu por sua atitude possa influenciar no ânimo da testemunha. Exige-se atitude irregular do acusado. Na prática, como se sabe, o juiz muitas vezes nem espera o réu entrar na sala de audiências. Já o impede de nela ingressar. Isso não é o que consta da lei. Cuida-se de ilegalidade patente”[5].

 

5. Outrossim, vem encontrando guarida entre muitos cultores do Direito e majoritariamente nos pretórios que inúmeros inquéritos instaurados e processos criminais em andamento, diversas absolvições por insuficiência de provas e prescrições abstratas, retroativas e intercorrentes não são considerados como “maus antecedentes”, mas tão somente com tal qualificativo aceitam-se as condenações criminais que não constituam reincidência.

 

6. Por outro lado há autores que sustentam a impunidade da tentativa de crime sempre que praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa[6] ou mesma a desqualificação da hediondez do crime tentado previsto no rol da Lei n. 8.072/90.[7]

                        

7. Por fim, urge destacar o enunciado 98, editado pelo Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE) que preceitua: “Os crimes previstos nos arts. 309 e 310 da Lei n. 9503/1997 são de perigo concreto[8], muito embora, a conduta de quem confia ou entrega a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada (art. 310 do CTB), ao contrário do que ocorre com o delito do art. 309, prescinde do exame de qualquer perigo concreto resultante da ação incriminada, bastando, ipso facto, a entrega pura e simples à pessoa não habilitada para configurar o crime.

 

8. O delito de trânsito de fuga à responsabilidade previsto no art. 305 da Lê n. 9.503/97 é inconstitucional por violar o princípio nemo tenetur se detegere.[9]

 

9. O projeto de lei acerca do monitoramento eletrônico de presos que tramita no Congresso Nacional nem foi aprovado, mas já foi criticado de maneira veemente pelo presidente nacional da OAB, Cezar Britto que entende que o monitoramento fere os princípios da intimidade e da privacidade e contraria o direito constitucional de ir e vir das pessoas, ainda que condenadas. "Hoje, é uma pulseira eletrônica; amanhã, um chip. Depois, se estende para as crianças, para os adolescentes e, por fim, passaremos a viver num lugar Big Brother, com todo mundo sendo vigiado pelo Grande Irmão onipotente e onipresente."[10]

 

Nestes nove tópicos abordam-se diversos temas e encontram-se consolidados os mais variados entendimentos sobre o sistema jurídico penal, entretanto, todos tem um fim comum, ou seja, de algum modo afastar ou mitigar o jus puniendi estatal contribuindo ainda mais com a impunidade no corpo social. E como nos ensina festejado autor a impunidade é o maior estímulo do delinqüente.[11]

 

Deflui-se, do exposto que são tantos os obstáculos, filigranas e querelas opostos a persecutio criminis in judicio, que dá a impressão que na esfera processual penal o Estado-acusador goza de presunção de má-fé e o acusado é uma personagem kafkaniana, perseguida implacavelmente.

 

Faz-se necessário vislumbrar que a crítica alinhavada não tem o objetivo de questionar a validez ou mesmo a excelência nos raciocínios jurídicos expendidos nos itens anteriores, mas tem por escopo, primordialmente, buscar uma mudança urgente de paradigma na interpretação doutrinária e jurisprudencial do direito penal e processual penal.

     

Esta mudança deve ser direcionada na efetiva tutela penal da sociedade, punindo-se, eficazmente, os crimes de pobres e ricos, na visão maniqueísta do eminente colega e professor Marcelo Cunha de Araújo[12], mas não simplesmente deixar de puni-los com pomposas construções doutrinárias importadas da Europa e livremente adaptadas ao nosso ordenamento jurídico.

 

Releva destacar que os notáveis jurisconsultos que vão abeberar-se nessas inestimáveis fontes européias assimilam e introduzem no cenário jurídico nacional somente o que lhes convém, ou seja, soluções absolutórias ou abolicionistas, sempre sob o pálio de um direito penal mínimo distorcido, mas nunca uma medida penal mais rigorosa na prevenção e repressão do crime ou mesmo na criação de mecanismos mais eficazes de proteção da vítima e reparação do dano causado pelo crime.

 

A esse propósito elucida insigne autor:

 

“Em suma, em primeiro enquadramento, a norma penal brasileira é mais afável, atualmente, no trato com o crime, se feita uma análise global. Aliás, tomando-se como base o homicídio verifica-se que o único país que se assemelha ao Brasil na fixação da pena em abstrato é Portugal (sem contar que este possui a pena relativamente indeterminada, para o criminoso perigoso). Todos os outros possuem penas severas, muitos deles de prisão pérpetua para quem tira dolosamente a vida de outrem”.[13] (grifo nosso)

 

Daí surge a indagação será que na França, berço das liberdades públicas,  um preso condenado a uma pena privativa de liberdade de 10 (dez) anos de prisão, teria durante o cumprimento da pena um direito a saída temporária, nos moldes do disposto no art. 122  e 123 da Lei de Execução Penal Brasileira, ou seja, regime semi-aberto e cumprimento de 1/6 da pena, se primário ou ¼, se reincidente? A resposta é negativa, pois existe um período de segurança durante o cumprimento da pena privativa de liberdade onde é proibida a concessão de qualquer benefício de execução penal, sem que se cumpra, nessa hipótese, pelo menos metade da sanctio juris concretizada, no caso 5 (cinco) anos, para se avaliar a possibilidade de concessão de qualquer benefício.[14]

                                                 

Por outro lado, na Espanha, um indivíduo, primário e de bons antecedentes, que embriagado na condução imprudente de um veículo automotor atropela e mata uma pessoa, além de severa pena privativa de liberdade pode sofrer uma pena acessória de privação de conduzir veículo por até 15 anos.[15] No Brasil, nas mesmas circunstâncias, o agente, na maioria das vezes, por responder por crime culposo (art. 302 do CTB), além de se livrar do cárcere em razão da possibilidade de pena alternativa sofrerá uma suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor no máximo de 5 (cinco) anos, conforme preceitua o art. 293 do CTB.

 

Do exposto surgem as seguintes indagações: os exemplos europeus citados são retrógados? Eles têm o condão de incutir o temor a potenciais delinqüentes? Tais medidas penais, dentro de seus limites, combatem a impunidade no seio da sociedade? Porque não adotá-los em nossas paragens? Certamente, alguém aparecerá dizendo que é inconstitucional!

 

Por outro lado, surge uma luz no fim do túnel através de significativas reações doutrinárias, inclusive respaldadas pelo Supremo Sodalício como a adoção do princípio da proibição da proteção insuficiente (Untermassverbot), vertente do princípio da proporcionalidade de origem nitidamente germânica.

 

Com efeito, o Estado ao se comprometer com a tutela penal de determinados bens jurídicos, quais sejam, vida, liberdade, propriedade, honra, segurança etc. carreia para si o ônus de fazê-lo obrigatoriamente da melhor maneira possível.

 

Nesse diapasão alumiam juristas de escol:

 

“(...) a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermässig), porque ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz, nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässig im engeren Sinn)”.[16]

 

“Convém notar, todavia, que o princípio da proporcionalidade compreende, além da proibição de excesso, a proibição de insuficiência da intervenção jurídico-penal. Significa dizer que, se, por um lado, deve ser combatida a sanção penal desproporcional porque excessiva, por outro lado, cumpre também evitar a resposta penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento, dado o seu grau de ofensividade e significação político-criminal, afinal a desproporção tanto pode dar-se para mais quanto para menos”.[17]

                    

Em linhas gerais, a sociedade espera ante a proteção constitucional anunciada, no âmbito criminal, uma resposta penal adequada que, exemplificativamente (item 7, supra et supra), reprima o crime-meio (v.g., art. 310 do CTB) para evitar-se um mal maior, o crime-fim (e.g., art. 302 do CTB), ou seja, uma  “proteção horizontal” -, no qual o Estado atua como garante eficaz dos cidadãos, impedindo tais agressões (tutelando eficazmente o valor “segurança”, garantido constitucionalmente) ou punindo os agressores (valor “justiça”, assegurado pela Constituição Federal). Dessa forma, pelo “princípio da infra-proteção”, toda atividade estatal que infringi-lo seria nula, ou seja, inquina-se o ato jurídico violador do princípio com a sanção de nulidade”.[18]

 

Dessa forma, pugnamos além da indispensável alteração paradigmática nos moldes suscitados que os operadores do Direito, em especial, aos membros do Ministério Público (Federal e Estadual) postulem a aplicação do referido princípio, inclusive, através de prequestionamentos, em recursos extraordinários, e ao Poder Judiciário, que igualmente encampe este postulado na formulação da norma jurídica concreta.                                                              

 

Nessa direção converge a communis opinio doctorum:

 

“Note-se que ambas as modalidades do princípio da proporcionalidade (proibição de excesso e proibição da proteção deficiente) se aplicam não somente à criação da lei processual (dirigindo o princípio ao Poder Legislativo), mas também à aplicação da lei processual (dirigindo o princípio ao Poder Judiciário). Uma das conseqüências, a nosso sentir, da violação do princípio da proporcionalidade em qualquer de suas vertentes é a possibilidade não somente por parte da parte prejudicada, de sustentar a nulidade do ato judicial (ou inconstitucionalidade da lei aprovada pelo Legislativo) viciado por meio de recursos ordinários, como pré-questionar a violação da Constituição Federal, podendo fundamentar e interpor até mesmo recurso extraordinário, socorrendo-se assim do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição Federal”.[19] (grifo nosso)

 

ALESSANDRO GARCIA SILVA - Promotor de Justiça 

 

 


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Malheiros, 22a edição, 2003, pág. 754.

[2] DIP, Ricardo e MORAES JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de.Crime e Castigo – Reflexões politicamente incorretas, Editora Millennium, 2ª edição, 2002, pág. 02.

[3] Juarez Cirino dos Santos apud FERREIRA, Gilberto. Aplicação da Pena, Editora Forense, 2004, pág. 107.

[4] GOMES, Luiz Flávio. Direito Processual Penal, Volume 6, Editora Revista dos Tribunais, 2005, pág. 97, in fine.

[5] GOMES, Luiz Flávio. Ob. cit.¸pág. 208/209.

[6] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal, Editora Saraiva, 3a edição, 2006, pág. 263.

[7] MARQUES, Tarcísio. Uma reflexão sobre os crimes hediondos na modalidade da “conatus”.Artigo publicado na Revista MPMG –Jurídico, Ano II, n.09, abril/maio/junho de 2007, pág. 46.

[8] Extraído do sítio virtual: www.fonaje.org.br/2006/, acesso em 30 de março de 2008, 1h10m

[9] BATTAGLIA, Anna Flavia Lehman, Crime de fuga à responsabilidade – incompatibilidade com a garantia constitucional ao silêncio, Artigo publicado na Revista MPMG –Jurídico, Ano II, n.09, abril/maio/junho de 2007, pág. 62.

[10] Extraído do sítio virtual Consultor Jurídico: https://conjur.estadao.com.br/static/text/54241,1, acesso em 30 de março de 2008 às 22h14m

[11] MAZZILLI, Hugo Nigro. Questões Criminais Controvertidas. Editora Saraiva, 1999, pág. 684.

[12] ARAÚJO, Marcelo Cunha de Araújo. O Direito Penal como sistema mantenedor do “status quo”. Artigo publicado na Revista MPMG –Jurídico, Ano II, n.09, abril/maio/junho de 2007, pág. 64/65.

[13] NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena, Editora Revista dos Tribunais, 2004, pág. 97/98.

[14] NUCCI, Guilherme de Souza, Ob. cit., pág. 114.

[15] NUCCI, Guilherme de Souza, Ob. cit., pág. 119.

[16] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e GONET BRANCO, Paulo Gustavo, Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 1a edição, 2007, pág. 323.

[17] QUEIROZ, Paulo. Ob. cit. Pág. 45.

[18] BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal, Editora Saraiva, 2a edição, 2007, pág. 64.

[19] BONFIM, Edílson Mougenot, Ob. cit., pág. 64.