O PRIVILÉGIO DO EMBAIXADOR

 

 

No Livro de Ester, no Velho Testamento, conta-se a saga do rei Assuero, que alguns historiadores identificam como Xerxes I (519 a.C. – 465 a.C.), senhor da Pérsia. Aborrecido com a rainha Vasti, Xerxes ordenou que seu séquito providenciasse para si donzelas virgens, belas de aspecto, vindas de todas as províncias de seu reino, para servir-lhe sexualmente.

 

Em 14/abr/2012, um compatriota de Xerxes teria cometido uma vilania sexual semelhante tendo como vítimas outras jovens donzelas. Num clube da Asa Sul em Brasília, o Sr. H. G., diplomata iraniano, foi acusado de bolinar quatro meninas brasileiras que nadavam com ele numa piscina.

 

Se fosse um cidadão comum, esse suposto pedófilo seria processado pelo Ministério Público numa vara criminal comum do Distrito Federal. Responderia por estupro (art. 213 do CP) ou por estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), na forma consumada ou tentada, ou por outro delito, a depender dos contornos da conduta.

 

Porém, como diplomata da República Islâmica do Irã, ele está protegido por um campo de força. A Polícia não pode prendê-lo e o Ministério Público brasileiro não pode processá-lo. Nenhum juiz brasileiro pode condená-lo. O pessoal do serviço diplomático tem privilégios previstos na Convenção sobre Relações Diplomáticas (Convenção de Viena de 1961), aprovada no Brasil pelo Decreto 56.435/65, que cria hipótese de imunidade absoluta à jurisdição local.

 

Em outras palavras, embora o crime tenha sido praticado em território brasileiro, o Estado nacional não tem jurisdição para punir, em seus tribunais, delito praticado por membros de missão estrangeira. Conforme o direito de Viena, a imunidade dos diplomatas só pode ser afastada em caso de renúncia expressa e inequívoca ao privilégio, manifestada pelo país de origem (Estado acreditante). É o que se lê no art. 32 desse tratado:

 

Artigo 32

1. O Estado acreditante pode renunciar à imunidade de jurisdição dos seus agentes diplomáticos e das pessoas que gozam de imunidade nos têrmos do artigo 37.

2. A renuncia será sempre expressa.

 

Segundo o art. 29 da Convenção de Viena de 1961 essa inviolabilidade protege a pessoa do agente diplomático, de modo que não pode ele ser objeto de qualquer forma de detenção ou prisão. A imunidade à jurisdição está prevista expressamente no art. 31, §1 do tratado: “1. O agente diplomático gozará de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditado”. Este mesmo artigo estabelece que tais pessoas sequer são obrigadas a prestar depoimento como testemunhas. Esta imunidade estende-se aos locais da missão, à residência do embaixador e aos veículos do corpo diplomático, como se vê nos arts. 22 e 30 do tratado. Deste modo, os agentes do Estado acreditado não poderão neles penetrar sem o consentimento do chefe da missão.

 

Os bens, arquivos, documentos, correspondência e comunicações da missão também não podem ser devassados ou apreendidos, mesmo por ordem judicial do Estado acreditado (o que recebe a missão), o que inclui a proteção da mala diplomática. É o que decorre dos arts. 24, 27 e 30 da convenção. Isto significa que nenhum juiz brasileiro pode ordenar medidas de busca e apreensão a serem cumpridas na sede da embaixada ou na residência do embaixador, ou em viatura do serviço diplomático, por exemplo. De igual modo, a Polícia não pode vasculhar automóveis a serviço de embaixada estrangeira, ou realizar o chamado “baculejo” ou “geral” em pessoal diplomático.

 

Portanto, quando um diplomata estrangeiro comete um crime em território nacional, a Polícia e o Ministério Público não podem detê-lo nem pedir sua prisão; não podem realizar busca e apreensão pessoal, veicular nem domiciliar; não estão autorizados a apreender suas correspondências ou a interceptar suas comunicações. Enfim, estão de mãos atadas.

 

Tais privilégios e imunidades também se aplicam ao pessoal do serviço diplomático brasileiro e às sedes das missões brasileiras no exterior. A lei também estipula que tais servidores brasileiros, quando em serviço no estrangeiro, só podem ser citados, civil ou penalmente, por meio do Itamaraty. É o que diz o art. 16, inciso III, da Lei 11.440/2006.

 

Então, quando comete um delito, um diplomata fica impune? De modo algum! Primeiramente, o Estado acreditado (no caso, o Brasil) pode declará-lo persona non grata, recolher suas credenciais e expulsá-lo do território nacional, na forma do artigo 65 da Lei 6.815/80.

 

Da Expulsão

Art. 65. É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais.

 

Ademais, de acordo com o art. 31,§4, da Convenção de Viena de 1961, “a imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado acreditado não o isenta da jurisdição do Estado acreditante”. Em outras palavras, a Convenção de Viena faz surgir uma hipótese de extraterritorialidade da lei penal estrangeira (a lei do Estado que enviou o diplomata). Embora tenha cometido crime no exterior, o agente diplomático responderá pelo delito de acordo com a lei do seu país se origem.

 

Assim, caso a República Islâmica do Irã renuncie ao privilégio do seu representante – o que é bastante improvável –, ele será julgado em Brasília, de acordo com a lei brasileira em aplicação territorial. Se, por outro lado, o Irã recusar-se a isto, o suposto pedófilo persa será julgado com base no Código Penal iraniano, em aplicação extraterritorial, estando sujeito a penas bem mais severas do que aqui, uma vez que a legislação daquela nação sofre influência da Sharia, cujas sanções lembram algumas descritas na Bíblia. Sobre este tema leia este post (“O corno confesso e a Sharia“).

 

Como o precavido H. G. fugiu de Brasília com destino a Teerã, ainda não se sabe se ele enfrentará mesmo algum tipo de justiça. Até agora a única sanção que sofreu foi aplicada pelos punhos e pés dos pais das vítimas que o flagraram logo após os seus alegados avanços sexuais. Para este tipo de pena, não há imunidade diplomática que baste. Campo de força algum funcionaria contra a ira santa dos pais daquelas meninas. H. G. teve sorte: podia ter sido submetido a outra norma duríssima, a Lei de Lynch.