O 171 Judicial - Vladimir Aras

12/04/2012 21:48

 

O 171 Judicial

 

Mais um episódio da série “Me engana que eu gosto”. Em decisão proferida em março/2012, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou posição hipergarantista que facilita a vida de qualquer um que queira usar o Judiciário para obter ganhos ilícitos, mediante o chamado “estelionato judiciário”, enquadrável no art. 171 do Código Penal.

 

O caso concreto é até compreensível, mas a ementa e seus fundamentos abrem a porteira para todo tipo de ilícitos por meio de ações judiciais que tenham em vista iludir juízes, fazendo-os propositalmente incorrer em erros de julgamento. Qualquer um percebe que uma alegação mentirosa perante um juiz atenta contra a dignidade da justiça e pode causar dano a outra parte e também ao erário. Poré

m, para a 6ª Turma do STJ:

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 171 DO CP. OCORRÊNCIA. ESTELIONATO JUDICIÁRIO. CONDUTA ATÍPICA. DESLEALDADE PROCESSUAL. PUNIÇÃO PELO CPC, ARTS. 14 A 18. RECURSO ESPECIAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO.

1. Não configura “estelionato judicial” a conduta de quem obtém o levantamento indevido de valores em ação judicial, porque a Constituição da República assegura à parte o acesso ao Poder Judiciário. O processo tem natureza dialética, possibilitando o exercício do contraditório e a interposição dos recursos cabíveis, não se podendo falar, no caso, em “indução em erro” do magistrado. Eventual ilicitude de documentos que embasaram o pedido judicial poderia, em tese, constituir crime autônomo, que não se confunde com a imputação de “estelionato judicial” e não foi descrito na denúncia.

2. A deslealdade processual é combatida por meio do Código de Processo Civil, que prevê a condenação do litigante de má-fé ao pagamento de multa, e ainda passível de punição disciplinar no âmbito do Estatuto da Advocacia.

3. Recurso especial a que se dá provimento, para absolver as recorrentes, restabelecendo-se a sentença (STJ, 6ª Turma, RESP 1.101.914/RJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 6/março/2012, unânime).

 

Dizer que para reprovar condutas como esta seria suficiente a multa civil por litigância de má-fé é o mesmo que dizer que um homicídio culposo não precisaria ser punido porque há a reparação civil e a multa pela infração de trânsito.

 

Outro fundamento da decisão é o direito de acesso à Justiça, que, segundo tal raciocínio, poderia ser usado inclusive para iludir o juiz, com base na primeira Lei de Gerson. Parece que o Judiciário tem poucas causas para julgar e ainda pode dar-se ao luxo de tolerar petições fraudulentas.

 

A relatora foi a ministra Maria Thereza de Assis Moura, a mesma que proferiu o voto condutor no julgamento no qual a 3ª Seção do STJ “tolerou” o estupro de menores prostituídas quando cometido com violência presumida na redação do Código Penal anterior à reforma promovida pela Lei 12.015/2009 (STJ, 3ª Seção, ED no RESP, j. 14/dez/2011).

 

A tese acolhida pelo STJ no está longe de ser pacífica. Em recurso especial que manejou contra decisão semelhante, proferida por uma das turmas do TRF da 2ª Região na ação penal 2005.51.01.503954-3, o procurador regional da República Rogério Nascimento, da 2ª Região (RJ e ES), ensinou:

 

Não se ignora que a posição adotada pela Turma do E. Tribunal Regional tem prevalecido na 6ª Turma deste Colendo Superior Tribunal, como se vê do provimento dado ao Recurso Especial nº 1.101.914/RJ, relatado pela Ministra Maria Thereza de Assim Moura, em 06/03/2012, centrado nos argumentos de que: 1) a formulação de pedido é incompatível com ardil, pois é função do juiz apreciar a postulação; 2) sentença não é vantagem ilicitamente obtida; 3) há resposta extra-penal para a deslealdade da parte, no CPC e, 4) a subsidiariedade recomenda que se afaste a incidência do direito penal quando há meio de tutela extra-penal do bem jurídico.

 

Todavia, a exemplo do que sustenta Nilo Batista – legitimado por indiscutível autoridade –, no artigo Estelionato Judiciário, publicado em 1997 na Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, v. 5, p. 209-217, e sem demérito para a communis opinio, este órgão ministerial acredita que a negação da tipicidade do estelionato judiciário não se sustenta. Toma-se, por isso, a liberdade de se valer, na sequência desta razões, do rico e atualizado exame da matéria feito no artigo supracitado. No mesmo sentido, aliás, decidiu a Primeira Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no acórdão depois reformado pelo STJ, relatado pelo Des. Federal Abel Gomes (ACR nº 20001.02.01.007383-8), razão pela qual, também se toma a liberdade de rememorar, adiante, trechos do voto condutor.

 

Conforme demostrou Nilo Batista, no direito estrangeiro a aceitação do estelionato judiciário (Prozessbetrug, truffa processuale ou estafa procesal) “é, hoje, posição doutrinal predominante”, merecendo destaque, no cenário brasileiro, ao lado do próprio, a voz abalizada de Magalhães Noronha (Crimes contra o Patrimônio, v. 2, p. 321). Assim se posicionaram Binding, von Lizt, Maurach, Wessels, Welzel, Antolisei, Martuchi, Giuseppe Ragno, Qintano Ripollés, Jiménez Huerta e Sebastían Soler. Na Espanha que possui um Código relativamente recente há até expressa previsão legal (art. 248.1 c/c art. 250.1, 2º da Lei Orgânica n. 10, de 1995).”

 

Citando Batista, conclui:

 

O estelionatário judicial não é um delirante como Calígula, que postulava a lua, nem um “desobediente civil”, como Thoreau, que questionava a lei; é um espertalhão que apresenta ao juiz um elemento falso ou omite um elemento verdadeiro – em ambos os casos, violando os deveres de lealdade e verdade – levando-o a uma decisão que não seria prolatada sem a consideração desse elemento. (Nilo Batista, ob. cit. p. 212).

 

Assim, em tempos como estes de muitas falácias e pouco siso, a decisão da 6ª Turma do STJ sobre o “171 judicial” é um estímulo ao uso do Judiciário para chicanas e golpes processuais, em detrimento da dignidade da Justiça, do tempo das autoridades e das partes e do patrimônio de terceiros.

 

O espanto do leitor com tal decisão só não é maior porque o acórdão abaixo, relativo ao crime de homicídio, ainda não foi publicado:

 

DUELO – LICITUDE – EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO – HOMICÍDIO NÃO CONFIGURADO – CONDUTA ATÍPICA – CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA – APLICAÇÃO DO ART. 5º, INCISO LXXIX DA CONSTITUIÇÃO. Não configura o crime de homicídio a conduta do agente que desafia outrem a duelo em praça pública e acaba matando-o. O direito de acesso a armas de fogo é garantido pela Constituição e pelo Estatuto do Desarmamento. O embate contraditório é próprio do duelo, entrevero tradicional nas sociedades modernas e pacíficas. Trata-se de indiferente penal. O ofendido é o único responsável pelo desfecho morte porque aceitou dolosamente o desafio do paciente e não foi exímio o bastante para desviar-se dos projeteis deflagrados contra sua cabeça. Aplicação da teoria matrix de autodefesa. Tiro pelas costas e a queima-roupa. Irrelevância. Bala mágica do caso Kennedy. Precedentes. Desculpa esfarrapada. Validade. Habeas corpus concedido para anular a ação penal. Inteligência do art. 5º, inciso LXXIX, da Constituição Federal, que assegura o direito fundamental à impunidade. (STI, HC 121.171/PM – País das Maravilhas, rel. min. Alice Wonderland, j. em 01/04/2012, p. Em 01/04/2013).

 

 

Foi enganado, não é? É só um inofensivo “171”. Pura ficção. Ainda…

 

 

Fonte - Blog do Vlad - https://blogdovladimir.wordpress.com